Por Joana Pinheiro
Introdução
Duas grandes forças concorrem para a permanência do ser humano na Terra: o instinto da autopreservação e o da propagação da espécie. Trataremos sobre a força natural de autopreservação que se expressa através da alimentação. “É uma lei natural que o corpo substitua as energias gastas. Ele necessita de nutrição”(p.83, Yesudiam). Hermógenes conceitua alimento como uma substância capaz de fornecer calor, construir tecidos e reparar perdas”. Um bom alimento, segundo Hermógenes é aquele que não exige muito esforço para ser digerido, assimilado e eliminado. Citando Hauser, Hermógenes afirma ainda que a alimentação adequada deve conter nutrientes em quantidade e qualidade adequadas às perdas energéticas daquele que se alimenta.
Restaurar a ordem no organismo proporciona grande deleite; quando o homem sacia sua fome, converte o desconforto em alegria. Entretanto, refletindo sobre o quanto a fome, a saciedade, a exacerbação do comer, a exaltação do prazer gustativo são capazes de interferir diretamente em nossos estados mentais, diversas questões vieram à baila como pontos cruciais de conhecimento, reconhecimento e por vezes superação na caminhada espiritual de um yoguin.
Desde a mais tenra infância somos convocados ao prazer oral. O segundo néctar que nos adentra, após as primeiras horas de vida é o colostro, sendo o primeiro, o ar. Um líquido especialmente elaborado pelo organismo de nossa mãe para o nosso organismo. Uma inteligência maior regeu nosso paladar a ter afinidade com alimentos, de tal sorte que sentimos imenso prazer em nos alimentarmos. Tão relevante para nossa fisiologia é a incorporação de nutrientes, que a alimentação foi propulsora de nossa histórica formação cultural como seres sociais. De nômades à sedentários, agricultores e domadores de fogo, nos tornamos hoje especialistas em comer. Mas que comer é esse? Quantos sentidos ocultos há no ato de alimentar-se? Sentidos culturais, sociais, psicológicos, políticos, filosóficos, ecológicos, e todos eles, coadunando para a emergência de nosso ser maior, o ser espiritual.
Mais que um simples ato de nutrir-se, a alimentação encena a materialização dos símbolos mais sagrados de preservação da espécie animal. A incorporação dos nutrientes que impulsionarão a vida física significa para muitos, também a representação da segurança psíquica. A fome, como ameaça à nossa sobrevivência, é causa unânime de desprazer e inquietação. O que se pretende aqui é equacionar algumas variáveis que inundam nosso cotidiano alimentar, destacando os 3 sentidos da alimentação enunciados pelo filósofo Gabriele Cornelli e sugerindo um quarto sentido, que emerge do estudo de autores yogues, qual seja, o espiritual.
Em seu artigo “Os sentidos da alimentação: para uma antropologia filosófica da alimentação”, Cornelli descreve o sentido ecológico, político e poético da alimentação. O sentido ecológico é aquele em que o ato de nutrir-se implica numa relação cultural com a natureza que é de caráter cíclico e portanto (ainda que teoricamente/filosoficamente) não-predatório. “Alimentar-se é uma troca contínua com o mundo” (p.28, Cornelli), alimentar-se é receber, mas é também oferecer. O processo fisiológico em que o corpo recebe alimento e devolve dejetos é natural na cadeia alimentar. Por outro lado, se fosse possível possuir tais alimentos dentro do corpo, morreríamos. O movimento, a troca é vital: “Reter é morrer não só fisiologicamente, mas é morrer nessa troca de vida que vamos implementar na alimentação entre nós e o mundo”. O autor coloca que nossa atitude com a natureza deve ser de respeito sagrado, sem posse ou violência. A troca através da alimentação deve preservar a essência das relações de troca no geral: a fruição do prazer e o impulso para a vida e não o fim dela, e nisto reside um sentido implícito de amor.
Há algo que a antiga ciência indiana acrescenta em favor de nossos estudos: “todos os alimentos, particularmente as verduras e frutas cruas, o leite, os produtos do leite e o mel estão cheios de prana indispensável à manutenção da vida, da energia e da saúde” (Yesudiam, p.88).
Quando tratamos de prana, devemos lembrar que a troca através da respiração é uma das bases do Yoga. Os pranayamas são experiências maravilhosas de relação com o mundo. Inspiramos e temos porções do meio dentro de nós. Retemos. Saboreamos cada sensação de se ter a natureza tão intimamente impregnada em nossos poros internos. Expiramos, devolvendo ao meio o que lhe pertence com um pouco de nós mesmos. Não se pode voltar a ser o mesmo que era antes desta inspiração; nos compomos deste prana sutil que inunda nossos pulmões e alcançam cada célula de nosso corpo e da mesma maneira nos apropriamos do prana contido nos alimentos. “Cada átomo de comida contém uma infinidade de prana alimentício que poderá ser liberado através de uma mastigação completa” (Yesudiam, p.88).
Hermógenes nos conta que os hinduístas concebem o homem integral como formado por cinco revestimentos (koshas). A camada mais densa, ou nosso organismo físico, “não passa de um agregado de matéria, formado exatamente pelos alimentos que consumimos” (Yoga para nervosos, p. 107). O prana, ou bioenergia além de dar vitalidade ao organismo forma a camada energética, uma esfera bastante sutil da composição humana. O prana encontra-se nos alimentos, mas não em qualquer um…
Cornelli não é o único autor a observar que até a história da humanidade na Bíblia começa com um problema sobre o que se pode ou não comer (os frutos da árvore do Bem e do Mal). Segundo suas observações, este não é o único mito que coloca a morte ou o envelhecimento como punição ao ser humano que não respeita a lógica ecológica da alimentação. Sem o devido respeito ao fluxo natural das trocas, o ser humano acaba quebrando o caminho natural e eterno das coisas, e esta é a deixa para a morte. Este primeiro sentido nos lembra que alimentar-se é estar num estado de troca de amor com a natureza, sem posse ou pertencimento mercantilistas. “É aqui que talvez encontremos o sentido mais profundo de uma alimentação ecológica: comer de maneira ecológica é aprender a amar, aprender a ter uma relação com a natureza e com o alimento e com aquilo que é simplesmente natural, mas que cria e promove a eternidade” (p.30, Cornelli). Desde tempos imemoriais já havia indicações de onde encontrar o prana alimentício:
“E Deus abençoou e disse: Eis que vos dei as ervas que dão semente sobre a terra e todas as árvores que encerram em si sementes do seu gênero, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves do céu e a tudo o que se move sobre a terra, e em que há alma vivente, toda a erva verde lhes será para mantimento” (Gênesis: 1-28-31)
Ou seja, o sentido ecológico de comer encontra-se em consonância com a filosofia Yogue desde que assume o ser humano como parte do Universo, que aceita trocas paritárias entre o homem e o meio pois que, em verdade não são partes separadas, mas pertencem a um Todo. Ser humano e natureza são um. Duvidar disso tem sido o caminho para longe de si. O recebimento de prana, seja por respiração ou alimentação estabelece a condição de não-violência, de não interferirmos predatoriamente neste meio que nos acalenta. “Alimentar-se em consonância com as leis cósmicas (…) significa compreender a enorme importância de viver integrado ao mecanismo intrínseco e mágico da vida. Nesse desabrochar de um novo homem, a alimentação é um elemento dos mais importantes” (Dr. Márcio Bontempo, p. 08).
O segundo sentido que Cornelli propõe explorar é o político. Tal sentido coloca em questão se um alimento é bom ou ruim para consumo, não em relação à sua composição nutricional, mas em relação aos seres humanos envolvidos em suas condições de produção, distribuição e consumo. Ou seja, o valor político deste alimento é viável para a sociedade? As tramas que nascem dele ou que dele derivam são benéficas para o ser humano? Essas questões emergem da relação do humano com sua cultura, não mais com a natureza, como discutido no sentido ecológico. O sentido ético e político da boa alimentação leva a conflitos bastante acalorados, como o tratamento que recebem os funcionários de um fast food, o tratamento que é dado à própria comida consumida nesses locais, as relações de exploração nos campos brasileiros, a monocultura, os atravessadores das multinacionais (que pagam barato ao produtor e revendem superfaturando para os consumidores finais) enfim, o autor discute a gestão da justiça na alimentação; “a boa comida é a comida produzida da maneira justa” (p. 32), cita o autor. Ao que tudo indica temos nos alimentado de maneira injusta e não sustentável: inúmeros são os explorados entre a produção e o consumo final e não há grandes perspectivas de uma alimentação saudável para as gerações futuras. Desta forma o autor, brincando, propõe uma utopia; que em tempos vindouros tenhamos uma opção a mais nas prateleiras de supermercados (além de com-agrotóxico ou sem-agrotóxico): produtos que constem ser politicamente bons, produzidos por comunidades norteadas por mais justiça em sua organização, em que as pessoas não sejam exploradas.
Dr. Bontempo afirma já haverem no Brasil meios de produção totalmente livres de elementos sintéticos. Entretanto não podemos saber se esses meios são capazes de assegurar justiça nas relações trabalhistas no campo e nos processos que se seguem. Na verdade o citado autor aponta para a grande máfia por trás da produção, que é o interesse unânime por lucro, a despeito do prejuízo para o meio ambiente ou para a qualidade de vida dos envolvidos no processo de produção, distribuição e consumo do alimento. A dieta orgânica é amplamente incentivada no meio Yogue pois dispensa o uso de agrotóxicos, extremamente agressivos ao meio ambiente e com efeitos danosos ao organismo humano. Mas a alimentação natural vai além deste quesito, “o alimento natural é aquele que nos chega como uma dádiva, ou presente, da natureza, como é o caso dos cereais integrais, das frutas, cujas plantas não precisam ser mortas para servirem de alimento: ou morrem naturalmente, deixando as sementes, ou podem ser retiradas sem que a planta principal tenha que ser sacrificada” (Bontempo, p. 11). Ou seja, seres que não apresentam reação de fuga ou temor frente à fome humana seriam alimentos de ordem mais apropriada ao consumo. Neste ponto voltamos a lembrar da importância do prana, como vimos, ele está concentrado em alimentos vivos e que nos são dados pela natureza gentilmente.
Esta discussão sobre o sentido político da alimentação nos coloca a importância da maneira como nos relacionamos com o alimento desde a verificação de sua proveniência. Afirma o engenheiro ambiental Daniel Francisco de Assis que “quando escolhemos orgânicos, dizemos não para uma indústria poderosa que visa lucro. E dizemos um grande sim para pequenas famílias românticas que fazem as coisas por amor” (p. 23).
Para Cornelli, o terceiro sentido é o mais íntimo da alimentação: o sentido poético. No sentido de revelar quem somos, a consciência alimentar nos faz conhecer a nós mesmos. Poético vem do grego poiésis : criação. “Comer é nos criar a todo momento, física e espiritualmente, isto é, eticamente” (p. 33) afirma o filósofo. Ainda do grego, cozinheiro é magheiros, que tem raiz comum com magia: a transformadora da realidade. Ou seja, “cozinhar é um ato de rebeldia das leis do mundo: é reinventar continuamente nossa relação com ele” (p. 33).
Yesudiam afirma que o organismo humano poderia sobreviver com uma quantidade ínfima de comida, compensando eventuais deficiências com a água e o ar. O que o organismo humano tem real dificuldade em lidar é com os excessos que cometemos a cada refeição. Os resíduos são tantos, que vão acumulando-se de maneira a intoxicar o organismo, que se expressa, muitas vezes através de febre e catarro, segundo o autor. Yesudiam nos conta uma lenda maometana indiana cujo fundamento pode-se encontrar referindo-se à quantidade de vezes que respiramos: “Alá destina a cada pessoa, ao nascer, certa quantidade de comida que deve durar-lhe até o fim de seus dias. Se consumirmos essa comida depressa demais, morreremos mais cedo” (p. 95).
Para Cornelli uma das coisas fundamentais da vida é conhecer o tamanho do próprio estômago, e nesse processo o ser humano vai tornando-se autor de escolhas mais precisas e preciosas acerca do que entra ou não em seu corpo. O papel de regulador, de selecionador é fundamental para o ser humano se conhecer, se reconhecer e se transformar. Aprender a escutar o próprio corpo é uma sutileza a que nos atentamos somente quando adoecemos, mas ao conhecer o tamanho de nosso estômago vamos aprendendo a ouvir quais são as verdadeiras demandas de nutrientes que precisamos ingerir, ou seja, não só a quantidade do que comemos, mas a qualidade do que comemos!
O filósofo finaliza suas reflexões trazendo a questão da fome enquanto ato de rebeldia contra a morte, que seria a perda total das energias vitais. Ele afirma que “comer é lutar contra a morte e o perecer da vida, mas afirmando trágica e corajosamente o efêmero, o que não é eterno” (p. 34). Produzindo, preparando ou transformando o alimento através do cozimento cada individuo transforma-se a si mesmo num ato de criação e recriação. No sentido poético, essa reinvenção do alimento leva a reinvenção de si e conseqüentemente do mundo. Uma possível definição de cultura pode ser também uma possível definição do cozinhar: “pegar as coisas como estão na natureza e transformar naquilo que se quer” (p.34).
Conclusão
Troca, movimento, prazer, amor, natureza, criação, eternidade, justiça, poesia, transformação, reinvenção… Palavras, conceitos e valores que não dissonam das reflexões que alguns autores yogues fazem a respeito da alimentação, mas apontam um sentido mais abrangente, ou holístico (do grego holos: todo) que é a concepção de um sentido espiritual para a alimentação. O desenvolvimento da consciência de ser uno com a natureza pode levar o ser humano a uma ampliação sobre a consciência de si mesmo. Expandir a reflexão sobre o ato de alimentar-se é, de alguma maneira buscar uma aproximação com nossos ritmos mais naturais, com a composição microscópica de que somos feitos na matéria e que de forma surpreendente está urdida com as nossas vibrações mentais e nossas esferas mais sutis. Yesudiam alerta para que “comecemos conscientemente, por livre e espontânea vontade, a fazer voltarem ao ritmo natural as nossas funções vitais” (p. 88).
Saciar um desejo natural é extremamente gratificante, o grande engodo disto, entretanto, encontra-se no fato de que o homem, reconhecendo esta cadeia de prazer, converteu o gozo em algo que tem um fim em si mesmo. Como afirma Yesudiam, “o homem já não se alimenta com o fito de manter a eficiência do corpo, mas considera o comer como fonte de prazer!” (p.83). Tornamos portanto nosso apetite em uma reação hiperestimulada. Yesudiam discrimina entre fome e apetite, conceituando o primeiro termo como algo natural e o segundo como mero ímpeto de prazer, fruto da superestimulação do paladar.
“O ser comum é escravo dos sentidos; alimenta-se obedecendo a impulsos, preferências e prazeres. Nesse estágio ainda precário de consciência, estabelece um padrão caótico, doentio e desajustado de alimentação, perpetuando assim seu sofrimento” (Bontempo, p.8). A exagerada estimulação do paladar nos leva a um apetite anti-natural, condiciona o organismo a adequar-se a processos lesivos acumulando toxinas e sobrecarregando seus órgãos. A literatura no Yoga aponta para o grande ônus que este processo gera para as organizações mais sutis do homem, afetando estados mentais, reações emocionais e atitudes cotidianas.
A prática do Yoga pode nos levar a uma percepção mais apurada acerca desses padrões que nos fazem vítimas de nossa ignorância. Iniciamos uma jornada em direção a nós mesmos e de maneira sutil e irreversível vamos nos dando conta da importância de cada gesto, de cada flor que há nesse imenso caminho da vida. Vamos nos fortalecendo enquanto seres divinos e vamos nos permitindo vivenciar uma maior expressão da vida em nós mesmos.“A Hatha Ioga produz uma serenidade mental que desconhece o medo, uma constante atenção a tudo quanto ocorre exteriormente, e a filosofia do homem religioso, que coloca a sua confiança inabalável na ordem superior de forças” (Yesudiam).
BIBLIOGRAFIA
ASSIS. Daniel Francisco de. Suco Verde.
BONTEMPO, Márcio. Guia prático da alimentação natural. Uma abordagem médica. São Paulo, 1994.
CORNELLI, Gabriele e Danilo Santos de Miranda (orgs). Cultura e Alimentação. Saberes alimentares e sabores culturais. São Paulo: SESC, 2007.
Hermógenes, José. Yoga para nervosos. 43ª ed. Rio de Janeiro, 2008.
Autoperfeição com Hatha Yoga. 50ª ed. Rio de Janeiro, 2010.
Yesudiam, Selvarajan e Elisabeth Haich. 16ª ed. São Paulo, 2002.